O Menino da Noite

O Menino da Noite

Era uma vez era uma vez.
Era uma vez a noite e um menino.
Pela primeira vez em sua vida, o menino estava contemplando a noite, que era uma descoberta e uma travessia. Então, ele disse, como se estivesse cumprimentando uma pessoa:

Professor: se necessário, comentar o emprego de boa noite na fala da personagem e de boa-noite, que é o nome do cumprimento.

Ele estava saudando a escuridão cheia de luzes - ou luzes cercadas pelas ilhas de escuridão. Ele estava cumprimentando o avião que passava pelo céu como uma constelação que vivesse voando, e ainda as janelas iluminadas das casas dos homens, e os anúncios que se acendiam e se apagavam no alto dos arranha-céus.

A tudo o menino dizia boa-noite, porque a tudo ele desejava saudar.
Ele sentia que a vida é uma amizade, e queria cercar-se de amigos, mesmo que estes fossem uma estátua na praça, um banco de jardim, uma palavra escrita no muro.

Foi então que, embora a escuridão o cercasse, ele viu

A PALAVRA ESCRITA NO MURO

Era quase um garrancho, mas o menino a leu, letra por letra. E disse:
- Boa noite.
A palavra respondeu:
- Boa noite.
Diante da delicadeza da resposta, o menino perguntou:
- Quem é você?
E ela, rindo com todas as letras do seu corpo, respondeu:
- Sou uma palavra.
O menino pensou que ela estivesse presa, já que não podia sair do lugar, e lhe perguntou:
- Mas quem pôs você de castigo aí no muro?
A palavra retrucou:
- Eu não estou de castigo. Estou livre. Todas as palavras que você vê nos muros da cidade são livres. Nenhuma delas está em cativeiro.

- Mas você está presa.
A palavra voltou a desmentir:
- Eu não estou presa. Num muro, uma palavra é livre como um pássaro. Menino, vou lhe dizer uma coisa para você guardar a vida inteira. Nenhuma palavra vive em cativeiro.
O menino se lembrou, então, de que em sua casa havia um grande dicionário que tinha nome de gente. E ponderou:
- Mas, num dicionário, as palavras estão presas.
A palavra (seria uma senhora ou uma senhorita?) riu, exibindo os seus belos e brancos dentes feitos de sílabas, e explicou:
- Mesmo num dicionário, as palavras são livres. Um dicionário não é uma prisão. É uma praça onde a gente se reúne.
- Para quê? - interrogou o menino.
- Para servir aos homens. Todos nós temos uma serventia. Estamos a serviço da vida, do amor. Uma palavra é como um sol. Esquenta as pessoas. Quem sabe palavras não sente frio.
- Mas quem foi que pôs você aí no muro? - quis saber o menino.
- Foi um homem. Foi a mão de um homem.

- Então, como foi que você nasceu?
- Eu não nasci. Eu estava voando. Então pousei na mão de um homem como se fosse um passarinho. Ele não precisou de gaiola para me agarrar. Era um homem que tinha vindo de um comício, o povo tinha gritado muito. Ele estava precisando de uma palavra para dizer o que queria, tudo aquilo que estava dentro do seu coração e não podia manifestar-se porque eu ainda não tinha aparecido. Então eu pousei na mão dele.

- E como é o seu nome, palavra-passarinho? - quis saber o menino.
- MEU NOME É LIBERDADE, MENINO.
- A senhora tem um nome muito bonito.
- Não me chame de senhora. Me chame de você. Eu sou você.
O menino queria ver mais coisas dentro da noite. Despediu-se:
- Adeus, dona Liberdade. Prazer em conhecê-la.
- Adeus, menino. Não se esqueça de mim. Seja meu amigo a vida inteira e não se arrependerá.

(IVO, Lêdo. O menino da noite. São Paulo, Nacional, 1984. p. 7-12.)

Lêdo Ivo é um escritor brasileiro, nascido em Maceió, Alagoas, em 1924. Iniciou sua carreira literária na imprensa pernambucana, onde trabalha como jornalista até hoje. Escreveu poesia, crônica, conto, romance e ensaio.

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